A Ronda das Almas em Luang Prabang e uma reflexão sobre o turismo

A cena se repete todas as manhãs em Luang Prabang. O sol ainda não raiou, mas os turistas já começam a se aglomerar nas ruas da cidade para presenciar a Ronda das Almas. Algumas pessoas, turistas e locais, se ajoelham na beirada das calçadas com cestinhas de arroz na mão. De repente a escuridão da madrugada é iluminada pelos mantos laranjas dos monges que começam a aparecer silenciosamente. Muitos são quase crianças, pequenos monges que os pais enviam aos templos para que tenham uma educação melhor e para que a família acumule méritos de acordo com as crenças budistas. Eles passam em procissão recebendo as doações de comida, são rápidos, e enquanto a gente ainda está lá tentando captar a mágica daquele momento eles já se foram.

Ronda das Almas em Luang Prabang

É uma cerimônia linda, não é? Quase todos os relatos que encontro da Ronda da Almas descrevem um momento sublime, carregado de significado. Você não é budista, mas naquele momento se sente conectado a uma força maior, é envolvido por aquela energia. Essa cerimônia realmente seria linda se não fosse por um detalhe: a praga chamada turista! Não pense que com isso eu estou me colocando num patamar diferenciado, me chamando de viajante em vez de turista e todo aquele blá blá blá. Não, acho que o problema somos nós mesmos, os turistas/viajantes, grupo do qual faço parte quando estou viajando. Energia na Ronda das Almas? Só se for a dos flashes disparados para todo lado!

Bom, já deu para vocês perceberem que esse não vai ser um post falando o quanto é legal participar da Ronda das Almas em Luang Prabang. A verdade é que fiquei bastante decepcionada quando presenciei a cerimônia. Desapontada, envergonhada, com raiva.

Ronda das Almas no Laos

Por todo lado em Luang Prabang a gente encontra orientações sobre como se comportar durante o ritual da Ronda das Almas. Encontrei um bom resumo num site de turismo do Laos e o transcrevo aqui, em tradução livre:

Como respeitar a Ronda das Almas

  • Observe o ritual em silêncio e faça uma oferenda apenas se isso tiver um significado para você e for feito de forma respeitosa.
  • Por favor, compre o arroz nos mercados locais pela manhã em vez de comprar dos vendedores de rua que ficam no caminho dos monges.
  • Se você não quiser fazer uma oferenda, por favor, mantenha uma distância apropriada e se comporte respeitosamente. Não fique no caminho da procissão dos monges ou dos fiéis.
  • Não chegue muito perto dos monges para tirar fotos; flashes são perturbadores tanto para os monges quanto para as pessoas comuns.
  • Vista-se apropriadamente: ombros, colo e pernas devem estar cobertos.
  • Não tenha contato físico com os monges.
  • Ônibus são proibidos no centro de Luang Prabang e são extremamente perturbadores, então não siga a procissão em um ônibus – você ficará numa posição acima dos monges, o que no Laos é uma falta de respeito.

Ronda das Almas

A cerimônia na Ronda das Almas é muito mais do que uma doação de comida, não é uma simples caridade. Para os budistas, oferecer a refeição aos monges é uma forma de acumular méritos. Para os monges é uma maneira de exercitar a humildade. Vi em muitos lugares a orientação sobre a comida, dizendo que não se deve comprá-la na rua e que o ideal é que a pessoa a prepare ou que, nos caso dos turistas, peça para alguém do hotel preparar. Parece não fazer sentido, já que a comida será doada do mesmo jeito, mas por aí a gente percebe que há outras questões envolvidas além da mera oferta de alimentos.

Vejo muito gente dizer que é legal participar da cerimônia porque a comida que os monges recebem pela manhã é a única que terão durante o dia. No cardápio do Restaurant Tamarind havia alguns textos interessantes sobre a culinária e a cultura do Laos e eu anotei uma informação que achei interessante:

Os monges sobrevivem apenas das doações feitas nas rondas das almas?

Não. A maioria dos templos recebe doações de comida de famílias locais todos os dias. Além desses rituais diários, doações de comida mais elaboradas são feitas em ocasiões festivas como nascimentos, casamentos, funerais e aniversários de morte, bem como nos feriados budistas. Apesar disso, muitos templos não recebem comida suficiente, então usam o dinheiro de doações recebidas para comprar mantimentos.

Achei que essa explicação faz bastante sentido.

Ronda das Almas

Ao procurar informações sobre a Ronda das Almas você provavelmente encontrará dicas sobre o melhor lugar para assisti-la. Os lugares que concentram maior número de turistas vão ficando “batidos” e aí as pessoas começam a migrar para rotas mais tranquilas, onde predomina a população local. Se você é um turista descolado, é claro que escolherá os lugares em que poderá ter a experiência de forma mais autêntica, não é? Mas peraí! Será que a gente tem o direito de fazer isso? Vamos mesmo estragar todos os locais em que a cerimônia acontece?

Presenciar a Roma das Almas me fez questionar o meu próprio papel ali. Fiquei distante da procissão, tirei fotos discretamente, sem flash, segui todas as etiquetas, mas ainda assim me senti uma intrusa. Que direito eu tenho de transformar os rituais religiosos de um povo em atração? Imagino se os atos rotineiros que eu pratico todos os dias de repente fossem considerados exóticos e aí as pessoas começassem a me seguir com câmeras nas mãos. Como eu me sentiria?

Mas é claro que nossa curiosidade fala mais alto. Nossa vontade de testemunhar uma tradição tão distante da nossa realidade vai continuar nos fazendo acordar às 5h da manhã para percorrer as ruas de Luang Prabang. E talvez isso não fosse um problema se houvesse um único cuidado: respeito. As informações estão por todo lado na cidade, mas tem muita gente que parece que não as vê ou prefere ignorar as recomendações. Falta respeito, falta bom senso. Foi o mesmo que aconteceu quando assisti ao rodopio dos dervixes na Estação de Trem de Sirkeci, em Istambul. É por isso que digo que somos como pragas. O respeito a diferentes culturas e religiões é um dos pilares do turismo responsável, mas infelizmente parece que nem todo turista se dá conta disso.

Veja todos os posts sobre a minha viagem ao Sudeste Asiático.

14 Comments

  1. Presenciei hoje o ritual e senti a mesma vergonha. Pessoas comprando arroz na hora para doar, somplesmente para tirar fotos. Foi um mix de vergonha e desconforto.

    Assisti, tirei minha fotos sutis. Mantive distância quieto. Mas vi varias pessoas com flashs e falando alto.

    Infelizmente há um desrespeito com a cultura local.

    • Camila Navarro

      É triste, não é Michael? A maioria das pessoas não respeita, tudo vira um circo. Minha viagem pelo Sudeste Asiático me fez pensar muito sobre isso.

  2. Ótimo post. Realmente não há textos sob esse ponto de vista e isso nos faz refletir não só a respeito da Ronda das Almas, mas tb sobre o nosso comportamento como turistas.
    A propósito, estou em Luang Prabang e amanhã irei presenciar a Ronda das Almas de uma forma mais cautelosa ainda.
    Textos como este nos ajudam a pensar mais sobre o que fazemos ou deixamos de fazer durante as viagens…deixei de fazer o passeio com os elefantes, visita ao Tiger kingdom e a ida à tribo das mulheres girafa nessa viagem ao sudeste asiático.

    • Camila Navarro

      Anderson, a viagem ao Sudeste Asiático foi a que mais me fez abrir os olhos para esses assuntos, acho que porque aí há tantas formas de turismo exploratório… Que bom que você também está questionando a forma tradicional de se fazer turismo!

  3. O turismo é uma faca de dois gumes. Antes dos turistas chegarem em peso no Laos, será que a vida do povo local era melhor? Eu não vejo problema algum em tirar fotos de eventos religiosos, ou de entrar em igreja, ou de me interessar pela cultura local. Afinal, por que as pessoas viajam? O problema é tomar cuidado para não ser inconveniente e desrespeitoso como vc mesmo falou.

    • Renato, eu acredito no turismo como um dos melhores meios de desenvolver a economia local e acho que ele pode ser um agente de mudanças positivas desde que seja feito de forma responsável. O mínimo que devemos fazer é ter respeito pelas pessoas e pela cultura local, né? E em Luang Prabang as informações de como agir de forma respeitosa estão por todo lado, só não ver quem não quer. É uma pena…

      • Sônia Rocha Barbosa

        Gostaria de saber é povo é esse que desrespeita, porque adoram tirar fotos para dizer que foram no local isso sim. Mas um povo muito intrometido, sem educação é o brasileiro, porque já assisti o próprio guia falar e eles fazem o contrário do mesmo jeito.

        • Sônia, não sei de que nacionalidades eram os turistas que vi em Luang Prabang, mas com certeza não eram brasileiros. Infelizmente a falta de educação não é um defeito só nosso. =/

  4. Carol May Rodrigues

    Concordo com você. Sabe que normalmente não entro nem em igreja, a não ser que seja uma obra de arte, tipo a Sagrada Família ou algo assim. Não sou muito religiosa e por isso morro de medo de interferir na religião de outras pessoas, acho muito delicado e desrespeitoso.

    • Carol, hoje em dia sou muito mais cuidadosa em igrejas também. Quando é uma igreja em atividade e vejo que há pessoas rezando eu respeito e fico quietinha no meu canto, nem foto tiro. E já parei com esse negócio de entrar em tudo quanto é igreja. rsrs

  5. Muitas vezes li sobre o ritual, mas jamais havia lido alguma que enfrentasse nosso direito de intervir, de estar ali meramente intruso dentro de algo maior, que nos é desconhecido. Seus questionamentos ficarão por algum tempo pipocando, não só em relação a Ronda das Almas. Delicioso e instigante. BjO.

    • Obrigada, Paula! Essa viagem para a Ásia foi uma verdadeira descoberta para mim. Ainda no planejamento da viagem eu me deparei com muitos dilemas éticos e estando lá meus questionamentos ficaram ainda maiores. Conhecer cultura tão diferentes da nossa é bom por isso, né?

  6. É isso.
    A propósito, fico feliz de dizer que não tenho nenhuma foto decente da cerimônia. Por quê? Porque preferi olhar de longe, sem interferir. O momento deles é muito mais importante do que uma fotinho besta que eu faria, pior do que muitas outras na internet.

    • Eu não preciso nem dizer, né? Todas as fotos que tirei estão nesse post, mas tive coragem de publicar justamente porque tenho mais orgulho delas do que das que deixam claro que as câmeras estavam na cara dos monges. =/

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.