198 Livros: Guiné-Bissau – A Última Tragédia

198 Livros - Guiné BissauEu já imaginava que Guiné-Bissau não me decepcionaria. Os demais países lusófonos têm sido a melhor surpresa do Projeto 198 Livros. Quanto riqueza guarda a literatura de língua portuguesa! Que alegria poder ler essas obras em suas edições originais, sem depender de traduções que talvez não consigam transmitir toda a beleza da nossa língua! E no caso de Guiné-Bissau, quanto ensinamento, quanto assunto para pensar depois que terminei de ler A Última Tragédia, do escritor Abdulai Sila! É dele também o primeiro romance guineense, chamado Eterna Paixão, mas eu achei que A Última Tragédia seria uma opção melhor para o projeto, além de ser mais fácil de encontrar por ter sido publicado no Brasil. Não me enganei. A escolha foi perfeita!

A Última Tragédia conta a história da colonização de Guiné-Bissau pela ótica do colonizado. Talvez o fato de termos nos tornado um país independente há quase dois séculos nos distancie muito dessa situação, mas quando paro para pensar nos países que só conquistaram sua independência há poucas décadas é que percebo a dimensão e o impacto da colonização. Guiné-Bissau, por exemplo, só conquistou sua independência de Portugal em 1973. É esse o tema que Abdulai Sila explora em A Última Tragédia com maestria.

A Última Tragédia - Abdulai Sila

A história se passa na Guiné-Bissau pré-independência. A jovem Ndani sai de seu povoado no interior do país em busca de uma vida melhor na capital, Bissau. Ela quer se ver livre da profecia de um curandeiro que dizia que ela era portadora de um mau espírito e que as tragédias acompanhariam sua vida.

Ndani não falava português, a língua dos brancos, mas aprendeu algumas palavras que repetiu de porta em porta na cidade: “Sinhora, quer criado?” E foi assim que ela foi parar na casa da Dona Linda e do Sr. Leitão, onde descobriu um mundo novo. Dormir num colchão de molas, num quarto sem mosquitos e com ventoinha, sentar calmamente em uma mesa pela manhã para tomar o mata-bicho em vez de acordar cedo e começar a pilar o arroz com o filho nas costas, obter água simplesmente torcendo uma torneira, descobrir que o cachorro do branco come mais carne que os meninos da tabanca. O mundo do branco é mesmo um mundo muito diferente. Nesse mundo Ndani também conhece o preconceito, a exploração e a tentativa de apagamento de sua cultura.

Dona Linda achava que tinha uma missão a cumprir naquelas “terras selvagens da África”. Era uma missão sagrada: catequizar os negros. Então ela criou escolas para os negros, para que eles se tornassem replicadores do Evangelho. Um desses replicadores é o Professor, um jovem que em A Última Tragédia representa o negro assimilado. Ele foi educado por brancos e fazia parte de um dos primeiros grupos formados pelas escolas de Dona Linda.

O Professor chega a Quinhamel e lá conhece o Régulo Bsum Nanki. O régulo é um líder tradicional africano, um personagem que sobreviveu à colonização. E o Régulo Bsum Nanki era também um pensador. Ele questiona a supremacia do branco sobre o negro e o direito de um povo invadir a terra do outro para instalar a sua lei.

“A maior parte dos brancos que vêm para Guiné é branco coitado. É para arranjar a vida porque lá na Metrópole não tem nada. Se é do Norte, é pescador. Se é o do Sul, também é pescador. Se é do Centro, é camponês, o trabalho dele é lavrar batata ou apanhar uva para fazer vinho. Quando chegam cá, esquecem tudo e pensam que as pessoas não sabem. Mas ele sabia. Sabia até muito.”

As vidas dos três personagens – Ndani, o Professor e o Régulo – em certo momento se entrelaçam. Abdulai Sila conseguiu tecer essa história de forma incrível. Através de um enredo envolvente, ele trabalha todos esses temas que já mencionei: colonização, preconceito, imposição cultural. Foi uma leitura deliciosa e que me deixou com o que pensar durante muito tempo.

A Última Tragédia foi publicado originalmente em Guiné-Bissau pela Kusimon Editora, em 1995, e no Brasil em 2006, pela Editora Pallas.

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