Spaciba!

Parecia uma tarefa simples: era só pegar o trem na estação de Riga e descer em Sigulda. Esse nos parecia o meio de transporte mais seguro, considerando que nem eu nem meu marido falávamos letão, a língua local da Letônia. “Two bilhete Sigulda”, acompanhado do sinal de dois com a mão, foi suficiente para que eu fosse entendida na bilheteria. A tabela de horários estava exposta, as paradas pré-definidas, não haveria erros!

Com os bilhetes em mãos, seguimos para a plataforma que indicava como destino Sigulda. Ainda faltavam alguns minutos para a partida e ficamos um tempinho observando os outros passageiros. Eles passavam direto por nós e entravam no trem, sem validar o bilhete em nenhuma máquina. Fizemos o mesmo e embarcamos.

O trem partiu no horário marcado. Sentamos lado a lado e tiramos da mochila um mapa de Riga e arredores para acompanhar o trajeto. O alto-falante anunciou a primeira parada. Não a encontrei. Tudo bem, devia ser uma parada intermediária, uma cidade pequena que não aparecia no mapa. Veio a segunda parada. Nada. Na terceira fiquei na dúvida. Será que falaram Ciekurkalns ou Incukalns? Era difícil entender a pronúncia em letão. Bateu o medo: saberíamos reconhecer nossa parada quando ela fosse anunciada? Estávamos no trem certo?

Ao nosso redor, ninguém parecia preocupado. O olhar distraído dos outros passageiros deixava claro que eles faziam aquele trajeto todos os dias, enquanto nossas caras de perdidos entregavam que éramos turistas, os únicos naquele trem. Aos poucos as pessoas foram descendo em cidadezinhas minúsculas ou estações que pareciam estar no meio do nada. A cada parada restavam menos assentos ocupados no vagão e em nós crescia o medo de ficarmos perdidos num lugar desconhecido no interior da Letônia.

De repente, percebemos que estávamos sendo observados. Uma senhorinha sentada algumas poltronas à frente olhava em nossa direção. Ela usava um vestido abaixo dos joelhos e um casaquinho que combinava com o céu nublado daquela manhã. O cabelo curto talvez tivesse o tom loiro escuro que vimos em muitos letões, mas, àquela altura da vida, nela já sobressaíam os fios prateados quase da cor dos seus olhos. Ela nos fitava com curiosidade e um princípio de sorriso em seus lábios nos tranquilizava de suas boas intenções. Não precisamos dizer, ela intuiu qual seria nosso destino. Éramos turistas, ora! E a cada parada anunciada ela olhava para nós e balançava a cabeça para os lados nos dizendo que não, ainda não era nossa cidade.

Não tivemos que esperar muito. Menos de uma hora depois chegamos a Sigulda e nossa nova amiga nos avisou. Ela desembarcou junto com a gente! Carregando um comprido guarda-chuva fechado numa mão e uma bolsa pequena na outra, ela foi andando à nossa frente. Com um simples gesto, indicou que a seguíssemos e só nos abandonou quando estávamos dentro do centro de informações turísticas da cidade. Falou com o rapaz da recepção, nos apontou o balcão e saiu, balançando a mão em despedida.

Agradecemos muito, ou pelo menos foi o que tentamos fazer. Não trocamos uma única palavra, apenas gestos. Pelo largo sorriso que nos deu ao ir embora, sentimos que ela entendeu que estávamos realmente agradecidos.

Saímos do centro de informações turísticas munidos de um mapa e começamos nosso passeio rumo ao Parque Nacional Gauja. Nossa intenção era visitar algumas atrações, especialmente um castelo medieval em Turaida, cidade vizinha a Sigulda. Iríamos a pé, aproveitando a caminhada para explorar a região. Nos sentíamos intrépidos aventureiros rumo ao desconhecido. Não estávamos muito longe da capital, Riga, mas num país pouco maior que a Paraíba as distâncias ganham proporções maiores. Para deixar a aventura ainda mais emocionante, desde cedo nuvens escuras anunciavam que o dia não era o mais propício para aquele passeio.

Mal tínhamos andado por Sigulda quando pingos d’água pesados começaram a cair. Estávamos perto de uma igrejinha que parecia perfeita para nos refugiarmos da chuva. Meu marido foi contra, disse que provavelmente havia décadas que ninguém entrava naquela igreja, mas ele não tinha ideia melhor e não dava para continuar o passeio naquelas condições, logo ficaríamos encharcados. Entramos.

A chuva caía lá fora e era fraca a claridade que entrava pelas janelas e iluminava os bancos de madeira. As luzes não estavam acesas. Assim que entramos, três velhinhas saíram do fundo da igreja em nossa direção. Pela alegria com que nos receberam, confirmamos a impressão de que há muito tempo não apareciam turistas por ali. Uma delas parece ter ficado com a incumbência de nos guiar e logo começou a conversar conosco. Não entendíamos nada!

Tentei recordar algumas palavrinhas em letão que tinha decorado, aquela listinha básica de olá, obrigada, me desculpe, não falo letão, mas na hora a confundi tudo. Será que “labdien” era bom dia ou obrigada? “Sveiki” era olá ou por favor? Na dúvida, soltei um “I don’t understand”, mas a velhinha claramente não falava inglês, pois não esboçou nenhuma reação. Pensei: estamos na Letônia, ex-República Soviética. Essa senhora com certeza viveu a época da dominação russa e deve falar russo. Não sei muita coisa, mas pelo menos sei dizer que não estou entendendo nada em russo. E lá vai, taquei um “Ni panimaio”. Deu certo, ela parou de falar na hora. Realmente ela falava russo. Ela sorriu para mim e disse toda entusiasmada “Ah! Russkiy!”

Minha pronúncia deve ter sido muito boa para que ela pensasse que eu era russa, mas agora eu tinha que desfazer mais esse mal entendido. De russo eu não lembrava mais nada, inglês não adiantava, parti para o português mesmo.

— Não! Não! Brasil!

— (Palavras incompreensíveis em russo)

— Brasil! Brasil!

— (Ainda o que eu acredito que fosse russo)

— Brasil! Carnaval! Futebol!

Ela parecia não me ouvir. Talvez ela nunca tenha ouvido falar em Brasil. Ainda tentei mais um pouco, mas ela já estava nos guiando pela igreja, falando sem parar em russo na maior simpatia. Meu marido foi logo me alertando: “Esquece, ela não tá nem te ouvindo. Faz de conta que tá entendendo e sorri”. Foi o que fiz.

Lá fomos nós conhecer a igreja sem entender nada, mas sempre balançando a cabeça para mostrar que sim, estávamos ouvindo. Li no guia Lonely Planet que eu levava na mochila que aquela era a Igreja Luterana de Sigulda, mencionada em registros desde o século XV. Talvez a velhinha estivesse nos contando sobre esses séculos de história da igreja, toda orgulhosa de algum personagem importante que tenha passado por ali, mas não sei, só posso imaginar.

E então chegou a hora de conhecer a torre da igreja. A velhinha não nos acompanhou. Ela indicou que subíssemos e ficou esperando lá embaixo. Seguimos sozinhos por uma escadinha de madeira estreita, parcamente iluminada por pequeninas janelas. Meu marido subiu na frente. A cada passo os degraus rangiam sob nossos pés. Subimos uns três andares e chegamos a um cômodo apertado onde estava o sino da igreja.

Não foi só o esforço físico que fez com que a velhinha ficasse quietinha lá embaixo. Na torre logo meu nariz começou a coçar. Teias de aranha se enroscavam no meu cabelo e quando toquei no sino meus dedos ficaram imundos da poeira que o cobria. Realmente parecia que há muito tempo um turista não visitava aquela igreja, muito menos a torre.  Quando uns bichinhos não identificados começaram a cair nos meus ombros, senti que era hora de encerrar a visita. Descemos a escada correndo, não deu nem tempo de descansar da subida.

Felizmente a chuva tinha passado e podíamos continuar o passeio por Sigulda. Sorrindo, nos despedimos da nossa anfitriã. A visita era gratuita, mas deixamos umas moedas na caixinha de doação da igreja, afinal, uma guia prestativa como ela a gente não encontra em qualquer lugar. Antes de sair ainda tive a chance de falar mais uma palavrinha em russo que eu sabia. Eu tinha esquecido como se agradecia em letão, mas não em russo: spaciba!

*Os leitores mais antigos do blog já conhecem essa história, contada de forma resumida no post sobre o passeio que fizemos no interior da Letônia a Silgulda, Krimulda e Turaida. Pois no final de 2018 fiz um curso online de Narrativas de Viagem com a Gaía Passareli e foi esse o causo que escolhi desenvolver. Mais retoques vieram depois no ateliê de escrita com a Julia Arantes, no Estratégias Narrativas. Obrigada, Gaía e Julia, por todos os toques! Quero que vocês revisem todos os meus textos.

Espero que os leitores do Viaggiando tenham gostado desse exercício de escrita por aqui. Talvez posts assim apareçam com mais frequência. Ando com saudade de escrever.

4 Comments

  1. Lisara SPires

    Adorei a história de vocês!

  2. Camila, muito bom receber novamente seus escritos! Parabéns pelas inovações.

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