198 Livros: Serra Leoa – Muito longe de casa

198 Livros - Serra Leoa Está sendo difícil encontrar as palavras certas para falar sobre o livro de Serra Leoa. Como se o passado recente do país não fosse triste o suficiente, ele agora é um dos que mais sofrem com o ebola, junto com Guiné e Libéria. Além das mortes causadas pela doença, Serra Leoa está amargando crises econômicas e de abastecimento por causa dela. Os efeitos a longo prazo ainda são indefinidos, mas quanto mais tempo demorar para o ebola ser controlado, piores serão. O crescimento econômico obtido nos últimos anos pode ser aniquilado e a população – grande parte dela ainda vivendo na miséria – pode sofrer ainda mais. E aí eu fico pensando: não é sofrimento demais para um povo só?

Mas voltemos um pouco no tempo. Na década de 90, Serra Leoa foi palco de uma das mais tristes guerras recentes. Os protagonistas dessa história foram o governo e o grupo rebelde RUF (Revolutionary United Front). A luta, que no início foi vista pelo povo como uma esperança contra um governo corrupto, logo foi ganhando contornos cada vez mais tristes. Que guerra era aquela que transformava crianças em soldados e civis em inimigos? Muito Longe de Casa - Ishmael Beah

Muito Longe de Casa nos traz os relatos de Ishmael Beah, um sobrevivente da guerra civil de Serra Leoa. Ele era só uma criança quando o conflito bateu na porta de sua casa. Quando a vila em que ele morava foi atacada pelos rebeldes, ele foi obrigado a fugir ao lado do irmão e de alguns amigos, sem saber o paradeiro do restante da família. Pela capa do livro a gente já sabe que Ishmael se tornará um menino-soldado e essa certeza já é suficiente para adicionar uma carga de tristeza à história desde o começo. Foi como ler um suspense, quando a gente sabe que algo irá acontecer, e fica imaginando o pior a cada virada de página, sabe?

Ishmael descreve o caminho que percorreu até se tornar um soldado lutando pelo exército de Serra Leoa, aos 13 anos de idade. Ele diz que no início os rebeldes usavam as pessoas como escudos para se protegerem dos militares, mas que depois tanto eles quanto o exército passaram a destruir as vilas que abandonavam para que não servissem de base para o inimigo. Nessas invasões novos soldados eram recrutados e as crianças não eram poupadas. Os meninos acharam que estariam protegidos em uma base militar, mas foram obrigados a se juntar ao exército. Para que eles perdessem o medo, eram incentivados a fumar maconha, cheirar brown brown (cocaína ou heroína misturadas com pólvora) e a engolir as “pílulas brancas” que os deixavam valentes. E assim eles perdiam não só o medo, mas também a inocência.

“A matança tinha se tornado uma atividade diária. Eu não tinha pena de ninguém. Minha infância tinha passado sem que eu soubesse e parecia que meu coração havia congelado.”

É difícil acreditar que um jovem possa se recuperar após sofrer o que esses meninos-soldados sofreram. A cultura em que eles cresceram, que respeitava os mais velhos e ensinava os bons modos, foi totalmente destruída. Quando Ishmael é resgatado, fica claro que a a reabilitação não será fácil. Tirar os meninos do meio da guerra não é suficiente para apagar o ódio que eles foram ensinados a sentir. Como Ishmael diz, eles tinham recebido uma lavagem cerebral que os havia tornado assassinos. Mas Ishmael teve força e sorte para buscar a recuperação e acabou se tornando um porta-voz desses meninos pelo mundo.

Em lugares com tantos órfãos como os atingidos pela guerra, recrutar crianças parece ser um bom negócio. Elas estão desamparadas e encontram nos grupos armados a proteção familiar que perderam. Os comandantes viram figuras paternas, os outros soldados viram irmãos. Manipular jovens e crianças é mais fácil e seguro que manipular adultos. É uma manobra tão suja, tão revoltante…

O papel de Ishmael Beah foi super importante para abrir os olhos do mundo para esse problema, mas já se passaram mais de 10 anos desde que a guerra civil de Serra Leoa terminou e essa atrocidade continua ocorrendo mundo afora. Estima-se que cerca de 300 mil jovens e crianças participem hoje de guerras como soldados,  principalmente na Ásia, na África e na Colômbia. E é por isso que eu termino esse post ainda com o coração apertado, sem saber ao certo como falar de um livro que tanto me emocionou.

Muito Longe de Casa foi publicado originalmente em inglês, em 2007, e no mesmo ano em português, pela Editora Ediouro. A tradução é de Cecilia Giannetti.

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4 Comments

  1. Desbravando Madrid

    Acabei ontem de ler este livro e gostei muito! mas fiquei também de coração apertado ao ler a história de tudo o que ele passou, da forma como lhe roubaram a inocência e a infância. Fico feliz que ele tenha tido a força suficiente para passar pela reabilitação e não voltar a juntar-se aos soldados!
    Apesar de tudo, a história teve um final feliz!

    Susana

    • O que me deixa mais triste é pensar que esse tipo de coisa continua acontecendo mundo afora e que muitas infâncias estão sendo roubadas como a de Ishmael sem que tenham a chance de se recuperar como ele teve. :-(

  2. Lu Malheiros

    Camila, o triste é que a gente sabe que crianças e adolescentes continuam sendo “recrutadas” para guerras ou atividades criminosas como o tráfico de drogas.

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