198 Livros: Gana – Journey

198 Livros Seria impossível não comparar o livro de Gana com o de Mali, que eu havia lido poucos dias antes. Para começar, a proximidade geográfica é grande, então o clima é parecido, com períodos de seca forte que castigam a população. Ambos se tornaram independentes há pouco tempo: Mali deixou de ser uma colônia francesa em 1960 e Gana se separou do Reino Unido em 1957. Mali fala francês, Gana fala inglês, mas vários dialetos ainda convivem com as línguas oficiais. O respeito aos mais velhos é um valor forte nas duas culturas. Os fulas, de quem Hampâté Bâ era descendente, são até mencionados no livro ganense, mas a semelhanças acabam por aí, pois os livros escolhidos retratam períodos bem diferentes da história. Amkoullel, o Menino Fula nos mostra o período colonial, enquanto Journey, de Gheysika Adombire Agambila, se passa num período mais recente, pós-colonial.

Journey nos conta a história de Amoah, um adolescente que sai de sua pequena vila paraJourney, de Gheysika Adombire Agambila estudar na cidade incentivado pelo avô, que percebeu que no novo mundo que se descortinou após a independência um  homem sem estudo não consegue muita coisa.  O capitalismo impôs novas exigências e as pessoas não podem mais sobreviver apenas com seus pequenos pedaços de terra. Ao contrário do avô, Amoah não enxerga o solmiah (homem branco) como superior. Ele é nacionalista e acredita no crescimento do país através da força de seus cidadãos e não do sentimento de inferioridade em relação aos europeus que muitos, principalmente os mais velhos, ainda sustentam. A educação seria a chave para se desvencilhar desse tipo de pensamento. Para ele, Gana precisa aprender a caminhar com as próprias pernas, sem ficar presa ao passado colonial. Apesar de não concordar com algumas idéias do avô, ele o respeita muito e faz questão de sempre visitá-lo em Tinga para mostrar que não se esqueceu de suas origens.

Ao lado de questões mais superficiais que envolvem a vida de um adolescente, como sua constante preocupação em relação às garotas, Journey descreve as discrepâncias entre passado e presente, cidade e interior, norte e sul do país. Parece haver bastante liberdade religiosa, pois cristianismo, islamismo e paganismo convivem em harmonia. Na capital a vida não é muito diferente do que conhecemos e as desigualdades sociais já são marcantes, mas nos pequenos vilarejos o tempo parece ter parado e as superstições são bem fortes (as pessoas acreditam em bruxas!). No meio estudantil não há tantas convenções, mas quando Amoah retorna à casa do avô ou vai viver com seu tio em Acra é que percebemos esses traços culturais, como o ritual de saudação que sempre ocorre nos encontros. Falamos muito em globalização e em uniformização cultural, mas acho que são esses os lugares em que ainda podemos encontrar as verdadeiras tradições de um país em sua forma mais pura.

Algumas partes do livro trazem diálogos em dialetos locais que nos excluem da conversa, mas em outras eu não sabia dizer se era proposital ou algum erro de digitação… Journey não foi um dos livros que me marcaram até agora, mas acho que foi uma boa escolha, pois me deu uma idéia da sociedade ganense contemporânea e é esse o objetivo do projeto, né?

Journey foi publicado originalmente em inglês pela Sub-Saharan Publishers, em 2006.

Mais alguns livros de autores ganenses:

  • The Prophet of Zongo Street: Stories, Mohammed Naseehu Ali
  • The Beautyful Ones Are not Yet Born, Ayi Kwei Armah
  • Harmattan Rain, Ayesha Harruna Attah
  • Wife of the Gods, Kwei Quartey
  • Children of the Street, Kwei Quartey

Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.

26 Comments

  1. Lucimara Busch

    Camila, finalmente li. Demora hein! rsrs
    Pois então, eu lendo agora os comments de vocês, me dei conta de que nunca tomo nota de nada. Só leio mesmo! Acho que devo começar a anotar algumas coisas interessantes. O livro foi médio pra mim. Até porque eu não fico muito entusiasmada, porque o inglês ainda me dá preguiça rsrs.

  2. Carla Portilho

    Esqueci de comentar sobre o título também – é nisso que dá ir escrevendo e postar, sem fazer um rascunho, rsrsrs…

    Posso dar uma de professora e provocar?!? Quantas “jornadas” vocês viram no romance?

    • Marina Vidigal

      Caramba Carla, quantos comentários interessantes. Talvez eu precise começar a tomar notas durante minhas leituras.
      Falando de jornadas, que eu me lembre, são pelo menos 5:
      -saída da vida de estudante
      -volta para o interior: contrastes entre o que ele aprendeu na escola e os costumes locais
      -mudança para a cidade e as expectativas
      – Vida de trabalhador: choque de realidade
      – Desemprego: hora de recomeçar

  3. Carla Portilho

    Ah, esqueci de fazer um comentário sobre as línguas… Vocês repararam que, quando Amoah sai para passear com os colegas de escola, ele é o único que consegue se comunicar com a senhora que lhes dá água, porque ela fala uma língua semelhante à da região de Tinga? Em parte, isso tem a ver com o modo como a África foi partilhada na época colonial imperialista – várias nações nativas foram agregadas em um mesmo país, e muitas vezes uma mesma nação foi dividida em dois ou mais países diferentes. Nesses casos, como li uma vez em uma entrevista com um nigeriano, o único jeito é usar a língua do colonizador como língua oficial do país após a independência, já que não se pode alçar uma das línguas nativas à condição de língua oficial em detrimento das outras…

    • Carla, tenho visto essa questão das línguas em todos os livros africanos! Sempre há dialetos que poucos entendem e encontrar alguém que fale a mesma língua é sempre uma alegria para eles. Parece ser uma sensação de volta à casa, sabe? Ai, o que fizeram com a África é tão triste…

  4. Carla Portilho

    *** SPOILERS ***

    Depois de mais um intervalo imenso, lá vou eu de novo com os meus spoilers, rsrsrs…

    O Journey me pareceu uma daquelas escolhas super acertadas para o projeto! Como disse a vocês pelo Facebook outro dia, ele não entra para a minha lista de livros favoritos, mas cumpriu muito bem o papel que esperávamos dele, não acham? É um romance bastante contemporâneo, que procura representar Gana na época atual, com suas qualidades e problemas.

    O protagonista, Amoah, não é exatamente aquele personagem cativante, a quem nos apegamos, com quem nos identificamos – mas não precisa ser. Ele é o sujeito pós-colonial por excelência, vivendo em meio a todas as contradições e dificuldades enfrentadas por uma nação com tão pouco tempo de vida independente. Não sabemos exatamente quando se passa a história, mas, considerando que Gana se tornou independente em 1957, dá pra concluir que Amoah e seus amigos nasceram no período pós-independência, e que seus avós (e talvez os tios) viveram o período colonial.

    Embora a narrativa não acompanhe um período de tempo muito longo (acredito que sejam só uns poucos meses), é possível ver uma boa transformação no personagem – Amoah passa de um adolescente meio deslumbrado com sua própria importância dentro da escola para um jovem adulto que vê que, no mundo real da cidade grande e do trabalho, as dificuldades são bem maiores e a educação não abre todas as portas.

    Acho interessante notar que a educação que eles recebem na escola é fortemente baseada no modelo colonial – os hábitos, as roupas, tudo é herança do imperialismo britânico. Vários diálogos e expressões mostram que essa crença de que o que vem do colonizador é melhor está incutido na cabeça deles, como “Ghana nonsense”… Nesse ponto, Amoah está no meio do caminho, no entre-lugar, dividido entre as tradições culturais e religiosas que traz de Tinga, na área rural de Gana, e os conceitos que aprende na escola. Isso fica ainda mais claro quando ele se muda para Accra e percebe que na cidade grande essas crenças e tradições não são nem mesmo conhecidas, como no episódio em que Mmah não compreende porque ele acredita que o objeto tirado de um túmulo pode, no entender de Amoah, ter trazido azar…

    Essa transformação dele é um certo amadurecimento que vem, na minha opinião, por dois caminhos – um é a morte do avô e o outro é a perda do emprego. Na verdade, o próprio emprego já tinha sido provocado por um certo amadurecimento – afinal, ele tinha decidido trabalhar para juntar dinheiro e pagar um bom tratamento de saúde para o avô… E logo percebe que sua educação secundária não rende frutos suficientes, e que as dificuldades são muitas.

    Ao mesmo tempo, vejo um lado sombrio nesse amadurecimento quando ele resolve se aproximar mais de Mmah após a morte do avô, considerando que o pai dela tem contatos na cidade que podem ajudá-lo, agora que seu tio precisou voltar para Tinga. O adolescente fascinado com Monica, a aluna alemã, passa a ver em Mmah um caminho mais possível – infelizmente, com uma certa frieza de propósitos, me pareceu.

    Por enquanto, foi mais ou menos isso, meninas. Tomei um monte de notas, enquanto lia, mas acaba sendo muita coisa para escrever… Se vocês quiserem continuar o papo, vamos lá! ;-)

    • Marina Vidigal

      Achei muito interessante o pedaço inicial do livro quando o autor descreve o prestígio e o poder que o garoto tinha na escola. Claramente, vindo de uma família mais humilde o papel de “aluno líder” serviu de mascara para o que ele veria a seguir,um mundo muito menos colorido onde ele era apenas mais um.
      Gostei das descrições do país, especialmente dos mercados e do transporte coletivo no estilo “tá saindo” mas nunca sai. Valeu a pena em termos culturais mas tá longe da lista dos preferidos.

    • Pensei exatamente o mesmo sobre o livro, Carla! Não foi um dos meus preferidos, mas se encaixou direitinho no projeto. E o que contrário às vezes acontece, né? Acho que o pós-colonialismo vai ser um tema recorrente nos livros africanos e nas ilhas do Pacífico, pois as independências aconteceram há muito pouco tempo. É interessante ver a opinião do povo sobre o assunto!

      Amoah pra mim é um típico adolescente. Chato, é claro. rsrs Mas a visão que ele tem do país é bem interessante. Também acho que ele cresceu a Gana independente, por causa de seu nacionalismo. E nesse ponto ele diverge bastante do avô. Mas achei que, apesar disso, o avô dele foi até bem moderno ao incentivá-lo a estudar. E isso fez toda a diferença na personalidade de Amoah.

      Também percebi que ele “acordou” quando saiu da escola e começou a trabalhar. Tudo foi mais difícil do que ele esperava. E a relação com Mmah é no mínimo estranha…

      Essa jornada literária tem me deixado cada dia mais revoltada com o colonialismo! Nós já somos independentes há tempo suficiente para perdermos essas referências, mas esses povos conseguem ver com mais clareza a dominação cultural a que foram submetidos. Me dá muita raiva!

      • Carla Portilho

        A nossa colonização, além de mais antiga, também foi feita de modo diferente… A colonização imperialista me parece muito mais cruel pelo aspecto cultural do que a colonização da época das Grandes Navegações. Sempre me lembro que a minha orientadora contou uma vez numa aula sobre o pós-colonialismo que os oficiais ingleses que serviam na Índia se aposentavam super cedo, para que os indianos não soubessem que os ingleses também envelheciam, e acreditassem que eles eram diferentes, praticamente super homens. Não é o ápice da crueldade psicológica?

        • Marina Vidigal

          Surreal essa história Carla

        • Os livros conversam mesmo entre si! Essa história de que os europeus não queriam que os colonizados descobrissem suas “fraquezas”, como doenças e velhice, já apareceu em algum dos livros. Não lembro se foi no do Comores ou se no de alguma ilha do Pacífico…

      • Carla Portilho

        Eu concordo que o avô dele foi progressista ao incentivar o estudo, Camila. Mas, como boa parte das pessoas que não tiveram a mesma oportunidade, ele acredita que o estudo abre mais portas do que efetivamente acontece… Existe um descompasso entre a ilusão dele, de que agora que Amoah terminou a escola secundária ele poderia garantir o bem estar da família, e a certeza de Amoah de que, sem prosseguir os estudos na universidade, ele não está, na realidade, preparado para muita coisa…

  5. Camila,
    Ótima resenha!
    Até agora, li poucos livros do projeto, mas me chamou atenção a importância dos mais velhos nas estórias: tanto “Como o soldado conserta o gramofone”
    como ” As lembranças” começam com a morte do avô do narrador. E a morte da avó é o tema do primeiro capítulo do livro da Malásia.

    • É verdade, Lu! Em grande parte do livro, os mais velhos têm uma participação importante! Pena que nem sempre seja uma relação de respeito, como no caso da Malásia, né?

      • Ah, é verdade! Comecei o livro de Omã e encontro outro avô na estória! Ainda não deu para perceber se vai ser um personagem importante ou não, mas gostei.

        • Carla Portilho

          Meninas, acho que os mais velhos vão ter muita importância nas histórias porque estamos escolhendo livros que nos ensinem algo sobre a cultura, história e tradições do país… Acho que esse nosso objetivo reúne um número de obras maior com personagens que normalmente são responsáveis por transmitir esse tipo de conhecimento, como as mulheres e os idosos…

          • Carla, mas será que isso é um traço cultural ainda vivo nessas comunidades ou algo em extinção? Porque é tão diferente do Brasil, né? Parece que aqui os mais velhos não são tão respeitados pelos mais novos…

            • Carla Portilho

              Eu acho que nós é que somos a exceção no caso do respeito aos mais velhos, Camila, infelizmente… Mas, de todo modo, mesmo que esse traço cultural esteja se apagando, ele é um recurso literário muito utilizado – na verdade, foi pensando nesse aspecto que eu escrevi o meu comentário aí em cima…

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